Artigo do Professor Doutor Alexandre Sousa Pinheiro*
(publicado com autorização do autor)
A relação dos membros de uma comunidade com os símbolos nacionais pode gerar dificuldades em que o Direito tenha que intervir.
Nos últimos dias, lesados do BES, irados com perdas financeiras significativas, pisaram a bandeira nacional numa manifestação de protesto; no ano passado foi julgado um artista que expôs em local público uma instalação em que do topo de um pau pendia a bandeira nacional (a peça chamava-se “Portugal enforcado”); historicamente, a primeira delegação olímpica portuguesa, após a revolução republicana, exibiu a bandeira cartista (Estocolmo 1912).
Com projeção judicial, o artista foi julgado inocente – bem – pelo crime de ultraje a símbolos nacionais: “Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias” (art.º 332.º do Código Penal). E a Constituição define a bandeira nacional como símbolo da soberania da república, da independência, unidade e integridade de Portugal (art.º 11.º, n.º 1).
Estava em causa a liberdade de expressão e de criação artística – bens tutelados constitucionalmente -, correspondendo a obra à interpretação de um momento da vida pública portuguesa.
A revolta dos clientes de um banco, que podem ter perdido importantes poupanças, atingindo a bandeira nacional nada tem de artístico, mas é uma forma de protesto contra atos de instituições portuguesas que deve ser debatida ao abrigo da liberdade de expressão.
Sobre matéria mais extrema – queimar a bandeira nacional em espaço público como manifestação de protesto – a Supreme Court norte-americana, em Texas v. Johnson (1989, maioria 5-4, relatado por Brennan), considerou que a bandeira como símbolo nacional inclui valores fundamentais da comunidade como a liberdade de expressão contida na Primeira Emenda, decidindo, portanto, ser contrária à Constituição a incriminação do ato descrito: “We are tempted to say, in fact, that the flag’s deservedly cherished place in our community will be strengthened, not weakened, by our holding today. Our decision is a reaffirmation of the principles of freedom and inclusiveness that the flag best reflects, and of the conviction that our toleration of criticism such as Johnson’s is a sign and source of our strength.”
Numa comunidade complexa existem sempre cidadãos que não se consideram representados pelos símbolos nacionais. Historicamente, deve notar-se que a bandeira nacional é uma pele republicana com origem nas cores carbonárias, o que não oferece sentimento de pertença a alguns portugueses inequivocamente patriotas.
A imposição de um comportamento exemplar perante os símbolos nacionais percebe-se quando está em causa a representação externa de Portugal, atos de natureza oficial ou situações em que o respeito pela bandeira e o pelo hino correspondam ao cerne de um ato público (acode à ideia as obrigações militares).
Os símbolos nacionais como hoje os conhecemos decorrem da construção do Estado-nação e da criação novos estados carentes de representações unificadoras. Constituem uma forma de nos distinguirmos dos “outros” e nos mantermos unidos. Podemos, no entanto, não nos achar neles.
O mundo é complexo e, nas sociedades democráticas, os problemas de identidade não se resolvem “nos termos da lei”.
* Professor Auxiliar, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas (ICJP), Investigador, Centro de Investigação de Direito Público (CIDP), Docente da Faculdade de Direito de Lisboa – www.icjp.pt/corpo-docente/docente/3806